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Shimon Peres
04.julho.2001

A paz ainda é possível

O chanceler israelense diz que é preciso vencer a onda de ceticismo
geral para se chegar a um acordo com os palestinos

Tania Menai, de Jerusalém

É difícil separar a história do Estado de Israel, fundado há apenas 53 anos, da trajetória pessoal de Shimon Peres, 77 anos. Atual ministro de Relações Exteriores e um dos caciques do Partido Trabalhista, ele foi duas vezes primeiro-ministro e participou da maioria dos governos desde 1948. Líder político num país em conflito permanente com seus vizinhos, Peres cunhou a imagem de moderado e conciliador. Em 1994, dividiu o Prêmio Nobel da Paz com o primeiro-ministro Yitzhak Rabin e com o líder palestino Yasser Arafat pelo acordo de paz assinado no ano anterior. Com o assassinato de Rabin, em 1995, Peres assumiu como primeiro-ministro, mas foi derrotado nas eleições do ano seguinte. Como chanceler, Peres tenta ser uma voz moderada no governo do direitista linha-dura Ariel Sharon, uma tarefa especialmente espinhosa diante da revolta palestina e do colapso do processo de paz no Oriente Médio. Casado, pai de três filhos e avô de seis netos, Peres é o fundador de um instituto, que leva seu nome, para pesquisas e projetos de diálogo entre árabes e judeus. Numa conturbada semana de negociações em busca de um cessar-fogo, Peres falou a VEJA em seu gabinete, em Jerusalém.

Veja – Um dia Israel deixará de ser notícia na imprensa mundial?
Peres – Saímos de 600.000 pessoas em 1948 para 6 milhões. Transformamos uma terra deserta em país, fomos atacados por todos os nossos vizinhos, ganhamos guerras, construímos um exército e um sistema educacional. Apesar de todos os perigos, continuamos democráticos. Israel sempre foi um drama. É mais um drama do que um país. Há cinqüenta anos, Israel começou uma maneira singular de desempenhar a política. É interessante viver uma vida tão exigente. Este pedacinho de terra nunca deixou de ser um enorme provedor de notícias para o resto do mundo por causa de sua força, da singularidade, da intensidade das experiências. Amo este país. Não me imagino vivendo em nenhum outro lugar. Seria muito monótono. Quando olho para cinqüenta anos atrás e comparo com hoje, vejo que temos 1 milhão de russos, 100.000 etíopes, judeus e não-judeus. Isso é fascinante.

Veja – O processo de paz com os palestinos está paralisado. Qual a responsabilidade de Israel no colapso de negociações tão promissoras?
Peres – Tanto a direita quanto a esquerda israelense cometeram graves erros no passado. Hoje é bastante difícil consertá-los, ainda que seja essencial corrigir os erros de ambos os lados. O problema é que a direita ocupou terras em excesso de nossos vizinhos, criando um mapa impossível de ser mantido na prática. Já a esquerda, para agradar à maioria, fez concessões demais. Devemos aprender com o passado e compreender que precisamos oferecer aos palestinos o suficiente para alcançar a paz. Mas também fazer o necessário para não perder o apoio dos próprios israelenses.

Veja – Qual é o peso da religião e de Jerusalém na disputa com os palestinos?
Peres – Bem, política é baseada em acordos. Religião é baseada em compromissos. Não se pode fazer a partilha de um bem religioso. O máximo que se consegue é compartilhá-lo. As questões políticas são baseadas, por sua vez, em divisões de território, de forças ou de posições. Na religião, o que interessa é o direito de rezar para Deus, cada um a sua maneira, com a própria voz, sem censura. A política é controlada por soberanias. Jerusalém deve ser aberta a todos os credos, todos os fiéis, sem monopólio de ninguém. Todos devem ter direito de visitar seus lugares sagrados.

Veja – Quando era secretária de Estado dos Estados Unidos, Madeleine Albright disse que "o futuro dos jovens israelenses depende mais da sabedoria do que de quanto território eles ocupam". O senhor concorda?
Peres – Não há como não concordar. Nunca teremos terras suficientes. E, tradicionalmente, o povo judeu tem mais história e sabedoria que território.

Veja – O senhor disse que na hora H o líder palestino Yasser Arafat se parece com os elementos flutuantes numa pintura de Chagall. Ou seja, falta-lhe objetividade. O Arafat de hoje é o mesmo com quem o senhor dividiu o Prêmio Nobel da Paz em 1994?
Peres – Sim, é o mesmo. Ele muda as regras, mas não pode mudar de personalidade. Da mesma forma que é capaz de grandes decisões, ele toma decisões erradas. Enquanto criticamos sua tomada de decisões erradas, subestimamos sua capacidade de tomar decisões importantes.

Veja – Desde que a atual rebelião palestina começou, há nove meses, a receita do turismo despencou 70% em Israel. O impacto negativo sobre a economia pode servir de incentivo para a busca de um acordo de paz?
Peres – De um ponto de vista econômico, temos de dar um basta aos conflitos o mais rápido possível. Quanto mais cedo, melhor. Mas essa não é a única questão que importa. Os israelenses estão muito decepcionados. O fato de que não podemos atender a todas as demandas dos palestinos está deixando todos muito céticos. Existe uma onda de ceticismo, o que freia a transição para a paz. Contudo, ainda acho a paz possível.

Veja – O senhor acha que a opinião pública mundial está agora mais ou menos simpática aos palestinos?
Peres – Os palestinos têm um grande inimigo, o terrorismo. Na verdade, o mundo está unido não apenas contra eles, mas contra ambos os lados do conflito. É uma atitude sem precedentes.

Veja – O senhor concorda que a imagem internacional de Israel nunca foi tão negativa como agora?
Peres – Não é a imagem que define a realidade. A imagem é parcial, irreal. Isso decorre do fato de ser construída a partir do noticiário da televisão. A televisão mostra a história, mas não a conta. Seu noticiário é baseado na rapidez, sem profundidade nem refinamento. A humanidade está dividida em duas partes: a que lê livros e a que assiste à televisão. As pessoas que lêem têm mais tempo, participam mais, contemplam mais. Esse ritmo mais lento é que forma a aristocracia de uma civilização. É uma pena que a maior parte das pessoas tenha pressa. O vai-e-vem rápido do noticiário da televisão não ajuda a entender situações complexas como a do Oriente Médio.

Veja – O senhor costuma falar de um "Novo Oriente Médio", sem guerras e com desenvolvimento econômico. Isso ainda é viável?
Peres – O Oriente Médio está entrando numa nova era, trocando os profetas pela tecnologia. As regiões prósperas são aquelas que produzem tecnologia. Não tem como escapar. Antes, o mundo era conectado pelo mar e pela terra. Agora, ele é conectado pelo ar. E no ar não há história, geografia nem soberania. Apenas comunicação, que é um importante meio de transporte. A divisão entre classes já não é definida entre quem tem e quem não tem posses, e sim entre quem está conectado ou desconectado. Os desconectados permanecerão pobres. Grande parte do Oriente Médio continua desconectada do resto do mundo, vivendo no passado. São lugares com ódios, nacionalismo exagerado e subdesenvolvimento econômico.

Veja – O senhor afirma que é do interesse de Israel que os palestinos formem uma sociedade moderna, não apenas uma reserva de mão-de-obra barata para os israelenses. Como seria possível chegar a isso?
Peres – Por meio da educação. A modernização começa nas salas de aula. Da mesma forma que o Exército é treinado nos quartéis, as crianças são treinadas nas escolas. É preciso cuidar bem das crianças desde pequenas. É possível corrigi-las ainda no ventre de suas mães, fazendo com que elas nasçam saudáveis, suprindo-as com a alimentação e a educação corretas durante a primeira infância. Nem sempre os pais fazem isso. É o nosso erro, a nossa falha. Depois temos de prepará-las para entrar na universidade. Devemos aprender durante toda a vida. Não devemos ser eternos estudantes, mas sim professores de nós mesmos.

Veja – Então se está longe da situação ideal, pois nas salas de aula das escolas palestinas prega-se a Intifada, a revolta popular. Como mudar essa situação?
Peres – Se os estudantes aprenderem a odiar, não vão aprender a se importar com a tecnologia. O ódio é conflitante com a ciência. Ciência é a busca intransigente da verdade. Não se pode combinar ciência e mentira. A propaganda política corrompe a capacidade de uma pessoa aprender objetivamente. Não podemos atrair investimentos se não tivermos transparência. Não podemos ter pesquisas se não formos uma sociedade livre. Não se pode ter cientistas se o país estiver corrompido. Se o sistema é corrupto, o governo será sempre arbitrário. Não basta comprar computadores e implementar acesso à internet para criar uma sociedade de alta tecnologia. É preciso ter a mentalidade certa. A ciência nos levará à democracia. Cada vez mais a ciência está nas mãos das empresas privadas. É papel do Estado combinar liberdade científica com liberdade social. Desenvolvimento tecnológico com transparência.

Veja – Como será o dia seguinte de um acordo de paz entre israelenses e palestinos?
Peres – Não sei. O direito de ser igual como indivíduo, mantendo sua própria personalidade, é a essência da paz. Acredito que a democracia tem dois significados: o direito individual de igualdade e o direito individual de ser diferente. Nossos netos saberão apreciar a paz. Mas isso não evitará que odeiem outras crianças. Eles têm de aprender sobre a cor de sua pele, sua religião, sua vida, seu passado, seu legado. O desafio é fazer com que se saibam diferentes e aceitem as diferenças nos outros.

Veja – A comunidade Neve Shalom, ou Oásis de Paz, situada perto de Jerusalém, foi criada há trinta anos para tentar a convivência entre árabes e judeus. Lá vivem cinqüenta famílias, metade árabes, metade judeus. Mais 300 famílias estão na fila de espera, mas não há espaço. O senhor acredita na ampliação de soluções como essa?
Peres – Vejo soluções nas formas de coexistência entre os dois povos, mas não necessariamente coabitando no mesmo vilarejo.

Veja – Tendo um Prêmio Nobel da Paz nas mãos, como o senhor define a paz?
Peres – É o direito de um indivíduo de expressar seus talentos sem sofrer repressões.

Veja – Alguns israelenses dizem que o senhor é um visionário. Outros acham o senhor um sonhador...
Peres – Um visionário é alguém que vê o futuro. Um sonhador é aquele que gosta de viver fantasias durante a noite, mas não é possível sonhar durante o dia. O dia é dos visionários. A noite, dos sonhadores.

Veja – O senhor participou de diversos governos, com diferentes visões. Qual é o governo ideal na sua opinião?
Peres – O poder é algo vazio, uma ilusão. O governo não é tão poderoso como as pessoas pensam. Na verdade, o que conta é a visão, e não o poder. Há conflito entre diferentes visões, mas houve acordos que nos ajudaram a passar por momentos difíceis juntos, apesar das diferenças. Essa é uma necessidade nacional, porque o perigo é tanto e as oportunidades tão poucas que temos de unir nossas forças.

Veja – O senhor é religioso?
Peres – Deixe-me fazer uma distinção entre religião e fé. Religião é uma organização, como rabinos ou padres, bispos e tradições. Ter fé não significa necessariamente reconhecer qualquer uma dessas organizações. Somos conectados diretamente a Deus, sem precisar da intermediação de rabinos ou padres. Nesse sentido, certamente não sou religioso, mas tenho fé. Não sei onde está Deus. Talvez no céu, talvez em nosso coração ou em nossa alma. Mas uma alma sem um Deus é uma alma muito pobre. Então, tenhamos Deus em nossa alma, de modo que ele nos faça mais nobres, crédulos, engajados e mais delicados. Deus não nos pede nada específico. Podemos viver segundo nossa consciência e nossa mentalidade. Dessa forma, não tenho muito que questionar. Por que não adotar um Deus em meu coração?

Veja – O que o levou à política?
Peres – Temos de tomar partido. Não podemos permanecer neutros. Não gosto da neutralidade, ela é uma forma de escape. Temos de fazer escolhas. E eu fiz a minha. Nasci numa época em que boa parte das pessoas era marxista ou comunista. Eu era contra isso. Optei pelo socialismo. E meu socialismo veio da Bíblia. Eu não via necessidade de violência. Parte da minha geração apoiava a partilha da terra, contanto que Israel fosse um Estado independente. Na época em que fui eleito secretário do Ministério da Defesa, ocorreu a Guerra da Independência. Lutei pela diversidade. No futuro temos de viver sob nosso legado espiritual, nosso talento para as ciências e transformar-nos numa nação contribuinte para o resto do mundo. Pessoas que produzem paz e esperança.

Veja – O senhor tem medo de morrer da mesma forma que Yitzhak Rabin, assassinado por um extremista israelense em 1995?
Peres – Não. Quem teme a morte nunca aproveita a vida.


[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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