Laurie Anderson
01.outubro.2001
A vida sobre as cordas
Tania Menai, de Nova York
Laurie Anderson, a alquimista dos sons, das imagens e do universo múltimídia, está de volta. Depois de sete anos sem presentear seu fiel público com algum CD, ela rodou algumas cidades americanas para apresentar ‘Life on the strings’, sua mais nova criação, que chegou às prateleiras em agosto. O longo silêncio, porém, não significa que Laurie abandonou as artes. Há dois anos, a artista tomou os palcos com o celebrado show multimídia ‘Mobi Dick’, adaptação do clássico da literatura que lotou teatros como o Brooklyn Academy of Music, em Nova York, e está sendo adaptado para o cinema.
No ano passado, um livro com sua obra desde 1970 foi lançado pela autora Roselee Golberg reuniu todas as criações de Laurie. Naquela época, Laurie já era tida como uma das mentes mais inovadoras de sua geração – título que nunca perdeu – por engajar arte, tecnologia e sociedade. Sua agenda de 2002, inclui a montagem de uma exposição multimídia que será apresentada no Musée Art Contemporaine em Lyon, e a criação de um pavilhão na Suíça.
Nascida em Chicago, Laurie desembarcou em Nova York em 1966. Sua paixão por esta cidade é tanta, que recentemente a artista foi convidada pela Enciclopédia Britannica para descrever a arte, a história e as ruas nova-iorquinas. Além disso, sua incessante curiosidade pela sociedade e pelo mundo a levou a passar algumas semanas do verão na cozinha do Mc Donalds da Canal Street, em China Town. Preparava hambúrgeres e fritava batatas. Não que ela estivesse interessada na arte culinária da maior cadeia de fast food do mundo. Mas queira saber o que leva as pessoas a gostarem ou não da empresa que mais simboliza o seu o país.
Há dez anos, Laurie divide a vida com o artista Lou Reeds – o casal vive em Tribeca, na beira do Rio Hudson, num apartamento claro, com sofás vermelhos, uma foto de Dalai Lama na parede da sala e amplas janelas que permitem uma bela vista para a Estátua da Liberdade. Uma escada caracol nos leva ao seu estúdio, equipado com mesas de som, computadores, órgãos e uma quantidade imensa de fios. No meio de tanta tecnologia, o que mais chama atenção é um pequeno violino, de design único, encostado num canto, perto da janela. Foi com ele que Laurie deu o tom de ‘Life on the strings’.
O que te impulsionou a compôr este CD?
Ele foi criado numa fase solitária e introspectiva - porém muito boa. O Lou estava viajando e eu dava belas caminhas às margens do Rio Hudson, com o meu cachorro. Esta introspecção faz parte deste novo CD.
É curioso também quando você diz que fez com que este trabalho “tivesse mais ar”. Como assim?
Vários compositores não sabem como arejar canções mais complicadas. Não sei adicionar muito elementos à música - para mim, é mais fácil tirar daqui e dali na mesa de som (ela mostra como, empurrando e puxando botões). É muito simples e eu gosto. Minha intenção não era fazer um trabalho muito técnico, já que hoje todo mundo está fazendo isso. Para se ter uma idéia, a filha de cinco anos de uns amigos compôs um CD no computador. Eu quis fazer algo mais pessoal. Além de usar o computador, utilizei um violino que o designer Ned Steinberger me enviou. Este violino ficou encostando durante um tempo, até um dia que abri a caixa e começei a tocá-lo pela casa. Esta é a primeira vez que gravo com violino desde o meu primeiro CD. E aí incluimos violoncelos, outros violinos e pensei “que venham as cordas!”. O CD, que ia se chamar Laurie Andreson, ganhou o nome, “Life on the String”. Gosto deste título, pois tem a ver com pescaria e com a caminhada com o meu cachorro e como a vida é tão frágil. Não sou como um músico profissional que tem de lançar um CD a cada ano, não sou ambiciosa neste sentido, não sou uma esnobe. Não tenho a ambição de alcançar multidões com a minha mensagem. Nem toda a música tem de ser grande ou global. Por outro lado, também não pretendo alcançar poucas pessoas. Reparo que os meus shows atraem gente da área, como outros músicos, escultores, pintores. Acho que eles vêm, em parte, para ver como estou resolvendo questões e para pegar algumas idéias.
Qual a razão do hiato entre seu último CD e Life on a String?
Este intervalo também acontece nas peças de teatro. Artistas costumam dar espaços entre shows ou exposições de arte. O lançamento deste CD estava programado para 1999, quando montei o show Mobi Dick. Mas não tive tempo de terminar a gravação no prazo. Então optei por dedicar-me exclusivamente à montagem do show. As músicas que compus para Mobi Dick continham sons que só faziam efeitos se combinadas com aspectos visuais – isso não funciona num CD.
Como a tecnologia e seus avanços influencia na criação de suas obras?
Ela sempre ajuda, mas a vejo como uma ferramenta. A tecnologia não pode mudar nossas vidas, caso não mudarmos a maneira com a usamos. Não podemos deixar as máquinas nos controlarem. As pessoas acham que só serão capazes de entrar no século 21 com as ferramentas tecnológicas que nos são empurradas pelo marketing. Trabalhamos para desenvolver essas fabulosas máquinas e nos esquecemos de que nossa intuição e sentidos são bem mais avançadas do que toda essa tecnologia.
O que acontece quando música e imagem interagem?
Ontem eu estava andando na rua, num clima úmido e quente. Tinha walkman nos ouvidos e quase não escutava o trânsito; tudo parecia um videoclip. Por exemplo, num filme, a música é muito sublime, mas controla as suas emoções – ela chega até o coração rapidamente. A visão não tem o mesmo efeito. Numa cena onde duas pessoas estão longe, por exemplo, não é possível saber se elas estão brigando ou conversando, mas a música vai te dizer.
Quando foi que você descobriu que a sua voz falada é como uma música?
Não penso exatamente desta forma, mas quando dei aula de arquitetura egípcia há vários anos, para juntar dinheiro, desconhecia muito sobre o assunto. Então eu inventava os fatos e contava histórias enquanto mostrava os slides. Quando tento transformar a fala em música, presto mais atenção na história no que na canção.
Há música pura sem alturas definidas?
Claro. Gosto muito. Ela pode ser um pouco complicada em termos de harmonia.
Sua música é crossover?
Muitos estilos de música são crossover – mas elas são divididas em categorias pelas vendedoras de CDs. Cada um deve se encaixar numa categoria para que possamos entrar na Tower Records e encontrar o que procuramos. Gostaria que a minha música fosse denomidada como a do ‘idioma’. As pessoas sempre são taxadas, sempre ouvimos a pergunta ‘o que você faz?’. Bem, no meu passaporte diz ‘artista’.
Você, que sempre esteve na avanguarda, acredita em hierarquia na área da criatividade?
Sim, porque existem várias progressões nas obras e nas pessoas que as fazem. Meu ritmo é algo que nunca vi antes, algo audacioso e que traz mudanças. Mas também gosto de pessoas que fazem a mesma pintura repetitivamente – isso pode ser bonito. Tenho admiração por quase tudo. É importante para o artista, contudo, saber por que e para quem ele está fazendo – é importante que os outros nos entendam. Deve haver comunicação – esta é a minha definição de trabalho.
Aonde está você nesta hierarquia?
Sou sempre uma principiante. Nunca tenho nada para começar, então estou sempre na base da hieraquia, tentando criar algo novo. Tudo bem que às vezes posso repetir algo que já fiz, mas sempre procuro ter a mente de alguém que está começando. Talvez o que me ajude é o fato de eu ter memória curta.
Quem são os seus pares na vida e na carreira? Lou Reed?
Lou e eu estamos juntos há quase 10 anos. Ele é meu melhor amigo, inclusive participa de uma canção deste disco. Mas, geralmente, ele age mais como um crítico. Ele tem um jeito diferente de escrever, que é mais direto. Mas quando você está com alguém por muito tempo, perde-se a noção do que é seu ou o que é do outro. De uma forma isso coloca limites no seu ego, o que eu gosto bastante. Nunca imaginei que isso seria possível. Morar com outro artista é uma coisa ótima, apesar de muita gente imaginar possa um pesadelo. Ele é mais pé no chão do que eu.
Que estranha geração é a sua, que parece não envelhecer?
Engraçado, não tivemos “filhos”. Pensei que teríamos hoje mais artistas performáticos. Uma das razões é econômica. Por exemplo, nos anos 80 as pessoas não estavam fazendo coisas grandiosas por falta de dinheiro, mas, felizmente, isso criou uma geração de gente cantando com um banquinho e um microfone. Isso estimulou às pessoas a escrever mais. Você não pode fazer com que os artistas parem de fazer música - eles fazem o que podem, em vez de tentar copiar gerações anteriores. Sempre tentei inspirar pessoas, mas não tenho visto gente desenvolvendo um trabalho como o meu. O mais importante é a energia que as pessoas coloquem em seu trabalho. Desta forma, eu diria que tenho mais em comum com rappers – nossos trabalhos não poderiam ser mais diferentes, mas, mesmo assim, me sinto mais ligada com suas histórias de rua. Gosto deles – gosto quando as pessoas são orgulhosas e celebram a si mesmas.
A cena mais memorável de Mobi Dick, foi uma em que você tocava violino, enquanto uma projeção mostrava letras de alfabeto caindo e girando, como se fossem flocos de neve. Como foi a montagem de Mobi Dick?
Esta foi a minha cena predileta, que bom que você comentou. Inclusive, inclui a música desta cena no CD(Here with You) – esta música tem a combinação de beleza com tristeza que procuro. As bibliotecas estão cheias de histórias fabulosas e estranhas, escritas há dezenas e centenas de anos, mas ninguém vai lá para lê-las. Alguns produtores pediram a 10 artistas escolherem seus livros favoritos e criar algo relacionado a eles. Não lia Mobi Dick desde a época da escola – depois que reli pela primeira vez, acabei relendo quatro vezes mais. Gosto da idéia de busca, além de o autor ter uma mente que nos leva a todos os cantos – na página três já estávamos nas pirâmides do Egito. Ele cria uma incrível coleção de imagens, aborda a relação com a natureza e questões filosóficas e aventuras. Este lado da obra me interessa mais do que a obsessão do capitão em caçar a baleia, o que foi retratao em outras adaptações para a televisão. Esta é a parte da mais chata do livro.
Certa vez, o escritor canadense Alberto Manguel disse que você é uma das pessoas que melhor entendeu o uso do CD-ROM. A multimídia hoje tem o mesmo impacto, num mundo de Internet, videoclipes e excesso de informação?
O perigo é que tudo isso se tranforme num ‘trade show’. Por isso que nesta nova turnê, não vou usar nada além de pouca luz e uma pequena banda. Esta é a primeira vez que faço isso, vamos ver como funciona…Mas também é porque alterno um show com grandes produções com um mais simples. Mas, na maioria das vezes gosto de me apresentar ao vivo para ter contato com as pessoas, independente de ser tecnológico ou não. E é disso que eu gosto. A tecnologia muitas vezes pode surpreender as pessoas, mas ao mesmo tempo distanciá-las – falta a intimidade. E a platéia nos ensina como ser capaz de se comunicar bem, não se mostrar demais ou não ser ‘inteligente’ demais. Por isso que gosto de observar pequenas coisas e fazer com que o público tenha uma nova visão para elas. Espero que as pessoas possam usar esta forma de observação em suas vidas. Este é o meu sonho.
Qual a sua relação com Nova York a ponto de você ter sido convidada para escrever sobre esta cidade na Enciclopédia Britannica e incluir uma música intitulada ‘Statue of Liberty’ neste novo disco?
Vivi aqui a maior parte da minha vida. Não conhecemos os detalhes da cidade onde vivemos tão bem – não vamos a tours que nos mostram as casas ou nos contam a história da cidade. Somos muitos atarefados. Me assustei quando a Enciclopédia me chamou. Comecei a caminhar pela cidade e estudar sobre ela. Foi muito especial – me lembrou o quão caótica é, e sempre foi, Nova York. Isso aqui é uma bagunça. Boston ou Filadélfia, foram cidades colonizadas por puritanos e até hoje elas tem essa cara, certinhas, cheia de regras. Nova York tem muito mais a ver com o Rio de Janeiro, por causa de sua mistura – isso é bastante excitante. Andar nas margens do Rio Hudson é muito especial. Mas o que me choca, por exemplo, é a pretensão de construções como as Torres Gêmeas, levantadas na década de 70, quando as esculturas minimalistas estavam em voga. Você pode imaginar duas Torres Eiffel? Há uma necessidade de provar que podemos fazer uma exatemente como a outra. A música ‘Statute of Liberty’ foi criada logo após este trabalho como a Enciclopédia – me dei conta que esta cidade tem tudo a ver com liberdade.
O que te levou a fritar batatas no McDonald’s?
Em primeiro lugar, esta cadeia é um ícone que envergonha muitos americanos. Até em Milão tem McDonalds...mas as lanchonetes estão sempre cheias. Trabalhei lá para descobrir o que é fazer um tipo de comida que agrada a um monte de gente – detalhes como qual a quantidade de açucar. Cheguei com uma expectativa de que ia me deparar com uma grande fábrica, mas na verdade, me diverti muito. Os copos de Coca-Cola devem ser preenchidos até transbordar, devemos dar uma idéia de abundância – o mesmo com as batatas. Se você encher apenas pela metade, você é demitido. A equipe nos apoia e o gerente também coloca a mão na massa. A maior parte dos clientes da franquia aonde trabalhei são chineses. Um coisa me marcou: no último dia em que eu estava lá, os preços aumentaram em alguns centavos e foi triste ver as pessoas saindo da lanchonete de estômago vazio, pois tinham o dinehiro contado. É fácil ser esnobe em relação ao McDonalds, mas trata-se de batata de verdade, carne de verdade e maçãs de verdade. Essa padronização caminha na direção da globalização – é deprimente, mas ao mesmo tempo, para algumas pessoas, um café da manhã no McDonalds é um grande coisa. Por $2.99 eles têm uma enorme refeição.
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[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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